quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

O médico e o monstro

Eu comando a orquestra: chupa mundo
Quando o trailer de "Steve Jobs" foi divulgado no ano passado eu comentei que somente aqueles três minutos já eram melhores do que o PAVOROSO (assim mesmo, em letras garrafais) "Jobs" (2013). Aquele filme era tão ruim que merecia ser esquecido. Ele começou errado já na escalação de Ashton Kutcher para viver o gênio da Apple, o cara que criou 32% das coisas legais que usamos no século XXI.

Pois vejam só. Após o lançamento de "Steve Jobs", o novo filme sobre o maluco irascível que começou o seu império numa garagem como grandes bandas de rock, deu uma função ao "Jobs". Isso porque se você quer conhecer a história de Jobs de uma forma mais linear e próxima do que realmente rolou na vida dele, ele vai te ajudar um pouquinho. 

Já no caso do maravilhoso trabalho da dupla Danny Boyle-Aaron Sorkin, o papo é mais profundo e visceral. Diretor e roteirista pegaram o fundador da Apple para fazer um filme-ensaio sobre a vida deste sujeito genial e intragável. Um cidadão amado por quem não o conhecia e duro de engolir pelos seus subordinados. 

Jobs nunca foi um exemplo de bom chefe. Por trás de todo o seu modo bem particular de pensar e sua teimosia tinha um cara que só admitia a perfeição. E pessoas assim são insuportáveis. Era um sujeito que seria capaz de vender a mãe por uma boa ideia. Um homem que tinha a consciência que estava construindo o futuro e revolucionando toda essa bagaça. 

Para fazer isso, Sorkin abusou da licença poética. Ele já tinha feito algo semelhante em "A rede social" (2010), filme que falava sobre a vida do fundador do Facebook, Mark Zuckerberg. Nem tudo o que acontece no filme realmente aconteceu. Mas é daí? Se o próprio Jobs pregava que era preciso vender uma imagem que gerasse um desejo animalesco de consumo, por que o roteirista não poderia fazer com que o seu filme fosse uma viagem reflexiva a partir de uma tentativa de entender a cabeça de Steve? 

"Steve Jobs" é um ensaio em três atos. Em cada um deles, o personagem vivido muito bem por Michael Fassbender contracena basicamente com cinco personagens: sua diretora de marketing e melhor amiga, Joanna Hoffman (Kate Winslet, merecidamente indicada ao Oscar), Steve Wozniak (Seth Rogen), o amigo com quem ele criou o Macintosh e começou a Apple, Andy Hertzfeld (Michael Stuhlbarg), o programador, John Sculley (Jeff Daniels), o CEO da Apple com quem ele tem um diálogo avassalador no segundo ato, e a filha Lisa (Makenzie Moss, Ripley Sobo e Perla Harney-Jardine nas três fases), que ele demorou a reconhecer. 

E tudo se passa em três momentos-chave da carreira dele: o lançamento do Macintosh, o lançamento do cubo NeXT, feito depois que ele foi expulso da Apple, e o seu retorno para recuperar a empresa com o lançamento do revolucionário IMac. 

Nestes três atos, Sorkin e Boyle fazem um exercício de especular o que se passa na cabeça de Jobs, de tentar entendê-lo e montar um quebra-cabeça que mostra o gênio e o monstro que ele era. Como qualquer ensaio, eles levantam teses e deixam no ar para o espectador refletir. Ele era teimoso demais? Não valorizava o trabalho em equipe? Precisava humilhar as pessoas? Por que ele precisava ser tão difícil? Até onde a personalidade controversa justifica a genialidade? 

Ambos vendem a ideia de um Jobs que se via como um semideus, acima do bem e do mal. O maestro da orquestra, o técnico do time, o Romário dizendo na TV: eu vou ganhar a Copa. Mas que tanta autossuficiência o prejudicava. Faltava-lhe humanidade para pedir perdão e reconhecer a colaboração de quem o ajudou a chegar lá. 

Você pode concordar ou não com as ideias do filme. Pode chegar a outras conclusões. Pode detestar o filme. Mas é impossível ficar indiferente a ele. 

A corneta acha lamentável que o roteiro de Sorkin, que venceu o Globo de Ouro, não tenha sido indicado ao Oscar. Mais do que o excelente trabalho do diretor e dos atores, são os diálogos escritos pelo roteirista que fazem o filme ser incrível. Uma bola fora da turma do careca dourado. Vou até me arriscar que "Steve Jobs" merecia concorrer a melhor filme. 

Este texto, que foi todo escrito em um IPhone (obrigado, Jobs!), se encerra com "Steve Jobs" recebendo a merecida nota 8,5.

Indicações ao careca dourado: Melhor ator (Michael Fassbender) e melhor atriz coadjuvante (Kate Winslet).

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